Capítulo 5 – O Auge do Pastel
O pastel que parou o Rio (ou quase)
Na manhã seguinte ao banquete divino que salvara a alma de Tiberius Caldarella, o crítico mais temido do país, Arlindo acordou com uma coceira estranha no ouvido e uma intuição esquisita no peito. O despertador não tocou. O rádio, por outro lado, sim.
— “Bom dia, ouvintes da Rádio Nova Aurora! E vamos começar o dia com a bomba gastronômica de ontem! Parece que um certo pastel virou manchete... escutem só o trecho da crítica publicada no GastroLux, assinada por ninguém menos que Tiberius Caldarella.”
Arlindo, ainda de cueca e camisa do Vasco, estatelou-se no sofá, com um café pingado na mão e o coração disparado.
A locutora leu:
— “Há lugares que servem comida. Outros que servem memórias. A pastelaria de Arlindo me serviu ambos. Provei o céu, chorei no balcão e saí de lá me sentindo mais humano. Nunca pensei que um pastel pudesse me lembrar do colo da minha avó, da risada do meu pai ou do primeiro amor. Uma experiência transcendente. Cinco estrelas. Indispensável. Sagrado.”
Silêncio.
Depois, o barulho de alguém quebrando o portão da frente. Arlindo levantou de súbito. Olhou pela janela. E ali estava.
Uma fila.
Não. UMA FILA.
Quilométrica. De pessoas com guarda-chuvas, patinetes, mochilas, cãezinhos e até uma senhora com um papagaio no ombro. Um grupo de turistas japoneses tirava selfies com a fachada. Um influencer fazia dancinha do TikTok segurando um pastel de vento que comprara no camelô só para ilustrar o conteúdo.
O bairro entre o céu e o inferno, antes silencioso e ignorado até pelo Google Maps, agora era notícia em tudo quanto era canto. Na televisão, um repórter gritava:
— “Estamos aqui no lendário Bairro da Meia-Morte, onde uma humilde pastelaria está provocando comoção nacional! O dono, um certo Arlindo, virou celebridade da noite para o dia. E o pastel, ah... o pastel... dizem que até ressuscita relacionamento falido!”
Arlindo teve que correr. Pôs o avental, calçou os chinelos tortos, prendeu o cabelo (que era uma mistura de maçaroca com suor) e foi para a linha de frente.
O inferno havia começado.
A fritadeira, velha guerreira, chiava como um monstro irritado. O óleo borbulhava como se fosse do próprio diabo. Arlindo girava, empanava, recheava, virava, queimava o dedo, gritava, agradecia, limpava o suor com o cotovelo e jogava pastéis voando para dentro de saquinhos.
— “Próximo!”
— “Um pastel do céu!”
— “Mais um escondidinho celestial!”
— “Tem pastel com gosto de infância?”
— “Tem suco de lágrimas do crítico?”
A pastelaria agora era cenário de filme. Luzes, câmeras, youtubers e três imitadores do Faustão discutindo sobre a textura da massa. Até um padre apareceu dizendo que queria abençoar a fritadeira sagrada.
Arlindo, no meio disso tudo, sobreviveu.
Com a ajuda de Zoraide, sua vizinha que veio fritar “só um pouquinho” e ficou 10 horas em pé, e do sobrinho Dudu, que digitava pedidos num celular enquanto fazia cosplay de caixa registradora humana, ele manteve o navio à tona.
Mas cada pastel saía com mais suor que recheio. O movimento era tanto que Arlindo pensou em abrir uma segunda unidade no quintal. Ou talvez na laje da dona Zulmira.
O telefone não parava.
— “É o programa do Ratinho. Querem você pra um duelo contra um chef francês.”
— “O jornal quer saber sua opinião sobre a economia baseada em pastel.”
— “Um reality show chamado MasterPastel quer que você seja jurado.”
— “Um coach do LinkedIn quer que você dê palestra sobre sucesso.”
— “O governo quer saber se você pode abrir franquias em Brasília.”
Arlindo... riu.
Riu como quem fritou 300 pastéis em um dia e ainda ouviu que o óleo estava "meio fraco".
Riu como quem não dormia há 38 horas.
Riu como quem sabia que no fundo, tudo isso era por causa de um livro velho, uma receita simples... e um pastel que fez um homem chorar.
No final do dia, o bairro entre o céu e o inferno estava mais para o purgatório do sucesso. Arlindo fechou as portas às 23h, com os pés inchados, os olhos ardendo e um leve cheiro de cebola impregnado na alma.
Sentou na calçada.
Zoraide trouxe uma cerveja.
Dudu apareceu com um pastel frio.
— “Toma, Arlin... é o último.”
Arlindo mordeu. O sabor... era diferente. Tinha gosto de glória, exaustão, alegria... e um pouco de sangue, porque ele mordeu o próprio dedo junto.
Sorriu. E disse:
— “Amanhã a gente abre mais cedo.”
E o bairro, adormecido, parecia sorrir também.