O senhor dos pastéis

Salgados pra viagem

Capirulo 14 – Salgados pra viagem

Os dias iam passando como vento manso no Pastel e Glória. Yasmin, Emiliano e Arlindo pareciam viver uma pequena eternidade de momentos simples — mas cheios de vida. Era pastel pra todo lado, gargalhada solta e muita história jogada no ar.

De manhã, Arlindo ensinava Emiliano a fechar os pastéis direito. Claro que o menino mais se lambuzava com farinha do que qualquer outra coisa, mas Arlindo só dava risada.

— Isso aí, meu filho! — dizia ele, apontando um pastel que parecia mais um travesseiro mal costurado. — Se não for bonito, pelo menos tem que ser honesto!

Yasmin tentava ajudar, mas vivia brigando com a massa grudando nos dedos.

— Pai, isso aqui parece cimento! — reclamava.

Arlindo sorria, de avental sujo e alma leve:

— Cimento? Menina, isso aí é ouro em forma de comida! Aprende direitinho que um dia vai herdar essa maravilha.

À tarde, quando o sol batia de leve nas mesas da calçada, os três se sentavam na frente da pastelaria para contar piadas ruins. Era uma competição ferrenha pra ver quem soltava a pior:

— Qual é o peixe que caiu do décimo andar? — perguntou Emiliano, tentando conter o riso.

Arlindo coçou a cabeça.

— Sei lá, qual?

— Aaaaai, atum! — berrou o menino, se jogando pra trás de tanto rir.

Yasmin fez aquela cara de quem se arrepende de ter ouvido.

— Isso merece um processo, Emiliano...

E Arlindo? Chorava de rir. Um riso que enchia o ambiente, um som que parecia varrer qualquer tristeza que tentasse se instalar.

À noite, depois que fechavam as portas, ficavam ali, só os três, ouvindo o rádio velho do Arlindo tocar modões antigos, cada um enrolado em seu próprio pensamento, mas unidos num silêncio confortável.

Arlindo olhava pros filhos e sentia o peito aquecer.

— Sabe — disse ele, uma dessas noites —, pastel é bom, vender é bom… Mas a melhor parte mesmo é isso aqui. Vocês.

Yasmin fingiu limpar o avental, mas na verdade era só pra disfarçar a lágrima que teimava em escapar.

Emiliano olhou para o pai e soltou, do nada:

— E pastel sem recheio é que nem abraço sem aperto.

Arlindo deu uma gargalhada:

— Esse menino puxou a sabedoria da família... Só pode!

E assim os dias corriam, cheios de farinha, de piadas ruins, de amor — aquele amor bom, que não precisa ser dito todo dia, mas que está ali, firme como o velho Pastel e Glória.

O relógio marcava um fim de tarde preguiçoso na pastelaria. O movimento já tinha diminuído e o cheiro de óleo quente começava a se misturar com o aroma doce do café passado.

Sentado numa cadeira de madeira antiga, de óculos na ponta do nariz, Arlindo folheava um livro pesado, de capa de couro gasto e páginas amareladas pelo tempo. Na lombada lia-se, em letras quase apagadas: O Grande Livro da Massa.

Emiliano se aproximou, curioso, limpando a mão no avental.

— Pai, que livro é esse aí?

Arlindo levantou os olhos por cima dos óculos e sorriu.

— Esse aqui, meu filho… é o legado do seu bisnonno. — Ele passou a mão com carinho pela capa. — Aqui dentro estão as melhores receitas da humanidade: doces, salgados, pratos de família… Uma verdadeira obra de arte.

Emiliano arregalou os olhos, impressionado.

— Sério?

— Sério — riu Arlindo, fechando o livro como se fosse um tesouro. — No começo, seu biso era um italiano muito tradicional. Tudo era sagrado pra ele: o jeito de fazer a massa, o molho, a pizza…

Arlindo encostou na cadeira e começou a contar, a voz ficando mais leve, como quem viaja no tempo.

— Com o tempo, ele foi deixando as tradições de lado... mas, é claro, tudo tem limite. Ketchup na pizza? — Arlindo fingiu desmaiar na cadeira. — Proibido!

— Quebrar o macarrão antes de cozinhar? — Bateu na mesa. — Sacrilégio!

— Agora, pizza de brigadeiro? — Arlindo deu uma piscadinha. — Aí pode. Seu biso aprendeu a amar o Brasil tanto quanto ele amava a Itália.

Emiliano sentou no chão, os olhos atentos.

— Quando chegou aqui, em 1912, seu bisnonno era jovem… tinha só 22 anos. A bisnonna, 20. Quando eles vieram seu nonno ainda nem era nascido, e uma tia-avó sua, que era a irmãmaisvelha dele.

Arlindo deu uma pausa, sorrindo com ternura.

— Seu bisnonno era um homem cheio de dúvidas. Meio fechado, meio desconfiado… — fez um gesto com a mão, como se desenhasse no ar. — Mas foi acolhido por um bom homem, um brasileiro de coração grande, que trabalhava aqui mesmo, no Rio.

— Ajudaram ele? — perguntou Emiliano.

— Ajudaram, e muito. — Arlindo assentiu. — Esse amigo ensinou pro biso a culinária brasileira: feijoada, acarajé, pastel… Eles foram amigos por uns 10 anos, até que o brasileiro teve que voltar pra Bahia.

Arlindo abriu um sorriso orgulhoso.

— Em 1920, seu biso abriu a pastelaria que você conhece hoje. No começo, era só uma lanchonete simples, mas virou sucesso. Todo mundo queria provar a massa do italiano ranzinza que aprendeu a botar o coração nas receitas.

Emiliano sorriu largo, sentindo o peso e o carinho daquela história.

— Então esse livro é tipo… a história da nossa família?

Arlindo fechou o livro e deu um tapinha carinhoso no ombro do filho.

— É mais que isso, meu filho. É o que mantém a gente junto, mesmo quando a vida quer separar. Cada receita aqui dentro tem um pedaço do nosso coração.

O menino abraçou o pai, apertado, e Arlindo retribuiu, com aquele sorriso que parecia abraçar o mundo inteiro.

E ali, no calor da cozinha já silenciosa, com cheiro de história e massa no ar, pai e filho selaram mais um capítulo da tradição da família Pasteline.

Aquele dia tinha sido maravilhoso.

As risadas, os pastéis fritando no óleo borbulhante, as histórias antigas contadas no balcão... tudo parecia um sonho bom que a gente não queria acordar.

Mas chegou a hora da despedida.

Emiliano e Yasmin ajeitaram as malas no porta-malas do carro preto. A mãe os esperava em casa, em São Paulo.



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Editado: 12.05.2025

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