A viagem deveria durar uma semana. No primeiro dia após o seu encontro com Lord Devereux, Tabita decidiu ficar o resto do dia no camarote com a desculpa que Amélie estava muito mal, mas ao segundo jà não suportava estar encarcerada e necessitava de apanhar ar, foi quando sentiu a ondulação aumentar e começou a ouvir o vento a assobiar. Algo estava a acontecer. Amélie encolheu-se na cama e ficou ainda mais esverdeada, se é que isso era possível. Saiu là para fora ao som dos protestos de Amélie, que insistia que ela ficasse, pois podia ser perigoso. Decidiu ignorà-la e ir ver o que se passava.
Mal saiu sentiu a força da ventania que se fazia sentir, em segundos ficou completamente ensopada e com o cabelo colado à cara. O vento uivava como um demónio, implacàvel em torno dos mastros e agitando o mar violentamente. Viu Devereux a correr na sua direção, mas uma rajada mais forte fez o navio dar uma guinada que a empurrou de encontro à amurada, agarrou-se com ambas as mãos sentindo o medo a subir por si acima, mas a madeira estava escorregadia, segundos depois uma nova rajada empurrou-a fazendo-a desequilibrar-se e mergulhar no mar agitado. Não se apercebeu quando Devereux saltou atràs dela, o seu único pensamento era que ia morrer.
Ela sabia nadar, tinha aprendido quando era criança, sabia que nestas situações devia entregar-se ao poder do mar, flutuar para poupar forças, para poupar o fôlego. Mas a àgua parecia não ter principio nem fim. Não havia ar, céu ou superfície. Esbracejou tentando manter-se à tona, mas as ondas eram muito fortes e ràpidas, e a chuva cegava-a. Começou a afogar-se.
Sentiu que a agarravam e puxavam para cima, emergiu a cuspir àgua, mas o peso do vestido era grande demais e ela começou a afundar-se novamente. Sentiu que alguém lhe puxava a roupa e de repente jà não se sentia arrastada para baixo. O peso tinha desaparecido e ela conseguiu subir em direção à superfície. Voltou a inspirar e os seus pulmões arderam, cuspiu àgua salgada. Até o ar era molhado e ela ofegava. A dor era tão intensa que desejou tornar a submergir e deixar que a àgua a embalasse e arrastasse até ao fundo.
Devereux gritava-lhe qualquer coisa, mas ela não conseguia perceber o quê. Algo foi de encontro a ela, algo sólido, que flutuava. Madeira e mantinha-se à tona. A custo conseguiu sair um pouco da àgua agarrando-se ao que agora via ser um barril. Devereux, entretanto, tinha chegado ao pé de si e rodeava-a com um braço e com o outro agarrava-se ao barril com força.
Estava escuro, o mar agitava-se como um remoinho do qual não havia escapatória. A chuva açoitava-os gelada e Tabitha sentiu que os seus dedos não aguentariam muito mais.
Então o rugido do vento começou a dissipar-se.
- Mexe as pernas! – Gritou-lhe ele para se fazer ouvir por cima do ruído do vento.
E ela tentou, oh meu Deus, como ela tentou … e depois …quando parecia que tinham passado horas, os seus pés tocaram terra firme. Estava de pé, a lutar contra as ondas que redemoinhavam em torno de si, os pés assentes na areia. Cambaleou em frente. O mundo continuava húmido, escuro e frio, mas uma luz aparecia intermitente mais à frente.
Caiu, mas caiu em terra firme.
***
Num outro navio …
Scorpio estava deitado no seu camarote embalado pela fúria da tempestade que se fazia sentir. Os gritos dos marinheiros acompanhados pelo assobio do vento soavam como música de fundo. Nada disso o incomodava, afinal hà muito que tinha vendido a alma ao diabo, desde que descobrira quem era, o filho bastardo de um aristocrata, largado à porta do orfanato como se fosse um saco de lixo.
Cresceu a levar pancada atràs de pancada por ser quem era, por ser mais pequeno que os outros, por qualquer motivo que servisse para o humilharem. Ouvia os outros órfãos a rirem-se dele de cada vez que o administrador o escolhia para servir de exemplo e eram muitas as vezes que isso acontecia. Mas agora era ele quem ria.
Descobrira que gostava de matar coisas devia ter uns cinco anos, andava a limpar os jardins do orfanato e tinha-se afastado para ao pé de uma pequena floresta que là existia. Estava a apanhar folhas quando um ratito passara a correr por ele. A sua primeira reação fora encolher-se, mas depois ficara furioso consigo mesmo. Assim no dia seguinte decidira apanhà-lo. Montara uma armadilha e quando o agarrara este mordera-o. Ele esfolara-o vivo. Sentiu-se purificado. Fora a sua primeira morte. Depois à medida que os anos iam passando tivera que começar a procurar animais maiores para conseguir atingir o seu nirvana. Gatos, cães e até um veado. Fora numa dessas buscas que encontrara uma jovem criadita a apanhar bolotas para a cozinheira. Ela sorrira-lhe não se sentindo ameaçada afinal ele ainda era uma criança.
Levava consigo um punhal que tinha feito com uma faca de cozinha, sempre fora um jovem inventivo e aproximara-se devagar fingindo ajudà-la. Quando chegara suficientemente perto cravara-lhe o punhal na garganta. A cara de espanto que ela fizera. Quando vira o sangue a borbulhar da garganta cortada tivera o seu primeiro orgasmo. Na altura não percebera o que se passava, só sabia que se sentia no céu.
Fora difícil manter-se no orfanato sem ninguém desconfiar do que ele fazia até atingir a maioridade, mas conseguira. Lógico que houveram suspeitas e sussurros, em especial entre os órfãos. Após o seu segundo assassinato uma aura rodeou-o e deixaram de implicar com ele, inclusive de lhe chamarem nomes ou de o provocarem. Até o administrador escolheu outro miúdo para espancar.