“A verdade não dói apenas quando é dita.
Às vezes, dói mais quando é guardada.”
— Belmira
Vianel sempre amanhecia com o som de andorinhas e o cheiro do café forte a escapar pelas janelas antigas.
A cidade era pequena, feita de ruas de pedra e memórias empoeiradas, mas guardava uma beleza resistente — como algo que insiste em permanecer apesar do tempo.
Na varanda da casa amarela da esquina, Belmira balançava-se numa cadeira de vime.
Os cabelos soltos, ainda cheirando a lavanda da noite anterior, voavam em direção ao sol nascente.
O vestido branco — simples, mas cheio de promessas — cobria-lhe os joelhos. Era o vestido da prévia do casamento.
O vestido de ensaio.
Não o da cerimónia, mas o da dúvida.
Naquele silêncio matinal, ela pensava:
"Será que o amor verdadeiro sobrevive a uma mentira bem escondida?"
Pereira ainda dormia.
Ele sempre dormia bem — como quem tem a alma em paz.
E talvez por isso, ela nunca soube como contar.
Fazia quatro anos.
Quatro primaveras, quatro aniversários, quatro Natais.
E uma traição.
Na primeira semana de namoro.
Com Wagner.
Com aquele maldito sorriso que ela achava ter esquecido.
Mas não se esquece do que se esconde — só se enterra mais fundo.
E o problema de enterrar demais...
...é que um dia a raiz cresce.
Belmira nunca se considerou uma mulher má.
Mas há uma diferença brutal entre ser boa... e parecer boa.
Ela aprendera cedo que o silêncio, quando bem vestido, era confundido com virtude.
Que a calma escondia muito mais do que a raiva.
E que um “eu te amo” dito por culpa tem o mesmo som de um dito por amor — mas não o mesmo peso.
Naquela manhã, enquanto as folhas dançavam no quintal e o mundo parecia em paz, o peito dela era uma ruína abafada.
Ela olhava para o céu com aquela típica cara de quem aprecia a vida...
Mas por dentro, questionava se merecia o futuro que estava por vir.
“Eu traí Pereira na primeira semana...
Não por amor ao Wagner, mas por fraqueza.
E agora estou aqui, quatro anos depois, vestida de pureza, noiva de um homem que me vê como o que eu finjo ser.”
O pensamento era uma lâmina.
Não pela traição — mas pela covardia de nunca tê-la nomeado.
Porque, se somos mesmo feitos das nossas escolhas,
quem era ela agora?
A mulher que amava profundamente um homem a quem mentiu desde o princípio.
Pereira nunca perguntou.
Ele não precisava.
Amava com uma fé cega — dessas que não investigam, apenas aceitam.
E isso a feriu mais do que se ele tivesse gritado.
Porque o perdão silencioso é muitas vezes o maior castigo.
A lembrança de que o outro nos daria tudo… e mesmo assim, nós mentimos.
Ela tocou o anel no dedo.
Era simples. Ouro fosco.
Como Pereira: sem brilhos, mas resistente.
E pensou:
"Será que ele sobreviveria à verdade?
Ou seria justamente a verdade que o faria amar-me de verdade, pela primeira vez?"