O senhor dos pastéis

Arlindo e a ordem do crítico

Capítulo 4 – Arlindo e a Ordem do Crítico

A pastelaria do Arlindo era um ponto fixo no caos carioca. Num bairro sem nome, onde o céu e o inferno dividiam a mesma calçada, os ônibus passavam sem parar e os carteiros se recusavam a entrar.

Lá dentro, o chão rangia, o óleo chiava e as mesas de fórmica guardavam mais histórias que muito livro de história.

Era ali, entre o barulho da fritura e o cheiro de cebola velha, que Arlindo — neto de italianos, filho de italianos, mas 100% brasileiro, porra! — reinava como o imperador dos pastéis. Seu português era afiado, seu italiano, manhoso, e seu tempero... controverso.

Naquela quarta-feira, tudo parecia normal: óleo reutilizado da semana passada, mosquitinhos de estimação rondando o vinagre e a trilha sonora sendo o chiado da fritadeira. Até que um carro preto e reluzente parou em frente à pastelaria.

Da porta saiu um homem alto, magro, usando um paletó que brilhava como bancada de reality show. Olhos afiados, olhar julgador. Passos calculados.

Tiberius Caldarella.

Lenda da crítica gastronômica.

Temido por chefs, padeiros, quituteiros e até donos de food truck.

Diziam que ele uma vez cuspiu um brigadeiro num casamento e o buffet fechou antes da sobremesa.

E agora, ele estava ali. Na espelunca do Arlindo.

— “Não pode ser...” — murmurou Arlindo, limpando a mão no avental que já tinha passado do ponto de nojeira aceitável.

Tiberius entrou, analisando tudo como um detetive do sabor:

— “Ambiente... peculiar. O chão grita. O ar é saturado de nostalgia... e gordura.”

Arlindo forçou um sorriso: — “Pastel é assim mesmo, né? Quanto mais gordura, mais carinho.”

— “Quero provar o famoso pastel de carne seca, queijo coalho e banana caramelizada. Vim ver se o burburinho é exagero... ou milagre.”

Arlindo correu pra cozinha como se a honra de todos os Arlindos do mundo dependesse disso. Preparou o pastel com esmero — do jeito que sua avó fazia (ou talvez melhor, já que ela usava manteiga vencida). Serviu no prato “de visitas” — o menos rachado da casa.

Tiberius deu a primeira mordida. Depois a segunda.

Silêncio absoluto.

Então limpou os lábios com um lenço tão branco que parecia nunca ter visto um torresmo.

— “Comestível.”

Fez uma pausa dramática.

— “Mas previsível. A carne está morna, o queijo não tem ambição. A banana... parece estar aqui por engano. A fritura é... ressentida. Falta emoção. Falta coração.”

Arlindo arregalou os olhos, entre ofendido e nervoso: — “Como assim? Eu mesmo fiz, com minhas mãos!”

— “Justamente. Senti suas mãos. Mas não senti você.”

Nesse momento, o silêncio foi quebrado apenas por um fiapo de ventilador tentando girar.

Tiberius se levantou lentamente, como quem vai embora. Mas Arlindo deu um passo à frente, abrindo os braços engordurados:

— “Peraí. Espera um minuto, pelo menos.”

Respirou fundo.

— “Fica. Me dá mais uma chance. Vou te mostrar o que é um pastel de verdade. Um pastel com história, suor e talvez um pouco de cebola em conserva.”

Tiberius arqueou uma sobrancelha.

— “Cinco minutos.”

— “Vai valer cada segundo.”

E lá foi Arlindo. De volta à cozinha. Rápido, suado, inspirado. Revirou armários, puxou a frigideira que ele só usava em ocasiões especiais (como o nascimento do sobrinho ou quando o Botafogo ganhava de virada).

— “Agora vai.” — murmurou.

Arlindo, sozinho na cozinha quente e pequena, respirava como um touro em fim de feira. O crítico lá fora, impassível. O tempo contra ele. A honra dos pastéis também.

Foi então que Arlindo teve um estalo. Ele abriu o armário mais alto, aquele que nem o mofo ousava ocupar. Lá dentro, entre uma tábua rachada e uma coleção de talheres enferrujados, estava ele:

O Grão Livro da Massa.

Uma relíquia que vinha passando de geração em geração desde os tempos do bisavô Arlindone, o primeiro da linhagem a fritar algo que fez alguém desmaiar de prazer.

Mas o livro não começou com Arlindone. Não. O verdadeiro mestre havia sido um baiano sorridente, de sandálias, que deu ao nonno italiano uma missão: “Cozinhe com o coração, ou cozinhe em vão.”

Esse livro — encapado com couro de sofá velho e cheio de manchas de molho — era mais que um caderno de receitas. Era um oráculo gastronômico.

Arlindo o abriu com reverência. As páginas amarelas, os rabiscos em italiano misturado com gírias cariocas. E lá estava ele: Receita 1 – Pastel de Escondidinho de Presunto e Queijo com Molho Especial.

Simples. Perigoso. Perfeito.

Ao tocar a receita, algo aconteceu. O livro... falou.

— “Mais alho, Arlindinho... você sempre exagera no coentro.”

A voz era inconfundível. Seu avô. O velho Giuseppe, que fritava pastel escutando Roberto Carlos e xingava em três idiomas ao mesmo tempo.

— “A massa precisa de descanso, não você. Vai, gira essa colher direito!”

Arlindo obedeceu como um aprendiz. Suava como um porco no verão de Bangu. Cortou os ingredientes com precisão, mas também com pressa — o que lhe rendeu dois cortes no dedo anelar e uma queimadura quase poética na palma da mão.

O molho especial — cujo nome estava riscado no livro, com a nota “segredo absoluto, nem sob tortura” — foi preparado com carinho, e uma colher de uma mistura que ele só chamava de “o tempero da nonna”.

Quando o pastel ficou pronto, Arlindo o olhou como se fosse seu filho.

Entregou nas mãos de Tiberius, que franziu a testa. Analisou. Cheirou. Mordeu.

E então...

Silêncio.

O tipo de silêncio que só acontece quando o tempo para.

Os olhos do crítico se arregalaram. A mordida virou outra, depois mais uma. Ele se esqueceu de usar os talheres. O guardanapo caiu no chão. Ele comia com as mãos, como um homem que reencontrou a infância.

— “Meu Deus...” — sussurrou Tiberius.

— “Isso é... isso é...”

Arlindo, com as mãos enfaixadas em pano de prato, se aproximou:



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En el texto hay: comedi

Editado: 26.05.2025

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