Capítulo 9 – O Pôr do Sol e o Gosto da Vitória
O sábado amanheceu calmo, com o céu ainda cor-de-rosa e o cheiro de óleo limpo no ar.
Na pastelaria Pastel & Glória, tudo corria dentro do normal: Roberto Carlos tocava baixinho no rádio, a massa era preparada sobre o balcão e Ermes passava pano no chão com aquele cuidado de quem entende que higiene também é carinho.
Foi nesse clima que Robson apareceu. Mas, dessa vez, não chegou como rival — veio como cliente.
Arlindo, com o pano de prato jogado no ombro, se aproximou e perguntou com um sorriso já pronto:
— E aí, Robson... o que vai ser hoje?
— Me vê um de calabresa com queijo.
— É pra já, respondeu Arlindo, já girando o corpo e abrindo a massa como quem dança uma coreografia antiga.
Enquanto esperava, Robson se encostou no balcão. Estava mais quieto que o normal, o olhar um pouco perdido entre o movimento da rua e o chiado do óleo.
— Já são 8h... Não vai abrir hoje? — perguntou Arlindo, sem tirar os olhos da frigideira.
Robson demorou um pouco a responder. Parecia carregar uma dúvida no peito maior do que o dogão que vendia.
— Sim... vou sim... — respondeu, hesitante.
— É que... eu queria te perguntar uma coisa.
Arlindo apenas olhou por cima do ombro, levantando as sobrancelhas como quem diz “fala”.
— Por que me ajudou ontem? — soltou Robson, olhando direto.
O barulho do óleo fervendo pareceu silenciar por um instante.
Arlindo sorriu, um daqueles sorrisos simples, quase nostálgicos. Apagou o cigarro no cinzeiro improvisado e respondeu:
— Olha, quando meu avô chegou aqui nesse bairro, ele não tinha nada. Mas teve gente que o acolheu. Gente que o ajudou sem perguntar muito. E ele sempre dizia pro meu pai: “A vida nunca foi sobre ser o melhor, mas sim sobre ser melhor.”
Robson ouviu em silêncio, com os braços cruzados, absorvendo cada palavra como se fossem conselhos de um velho sábio — só que de avental.
— Sabe... — continuou Arlindo, virando o pastel com destreza —
— Não existem inimigos. Existem concorrentes. E quanto maior a consciência, mais justos são os preços... hahaha.
Robson riu também, pela metade, ainda refletindo.
— Eu não quero acabar com você, Robson. Pelo contrário. Quanto mais opções as pessoas tiverem por aqui, melhor pra todo mundo.
— E o mais importante: — completou, colocando o pastel quente num pratinho de plástico —
— Você tem contas pra pagar. Todos temos. Não me pergunte por que eu te ajudei... só faça o mesmo, quando puder. Ajude quem estiver ao seu alcance — concorrente ou não.
Robson pegou o pastel. Estava fumegante. Crocante.
Mas o que aqueceu mesmo foi aquela conversa.
E naquele momento, naquela manhã de sábado, ele não viu em Arlindo um rival de feira.
Viu um amigo.
Um mestre.
Um daqueles raros seres humanos que entende que crescer junto é mais importante do que vencer sozinho.
Enquanto Robson saboreava seu pastel de calabresa com queijo, uma BMW preta estacionou bem em frente à Pastel & Glória. O carro era elegante demais para aquele bairro simples, chamando atenção de quem passava.
De dentro dele desceu primeiro um garoto de cabelo escuro, aparentando uns 12 anos, seguido por uma mulher loira, alta e elegante, que parecia ter uns vinte e poucos. Robson, curioso, observava a cena de longe. Pela postura e semelhança entre os dois, achou que podiam ser irmãos, talvez mãe e filho… até que viu Arlindo largar o pano de prato, sair da pastelaria e ir ao encontro dos dois com um sorriso aberto.
Ele os abraçou com força, como quem abraça um pedaço de casa que estava longe.
— Yasmin, Emiliano! — disse, com o coração na voz.
Yasmin, com seus 1,70m, cabelos loiros bem cuidados e um olhar firme, sorriu carinhosamente.
— Então, pai… como você está?
— Tô bem demais, minha filha. E você, como vai a faculdade?
— Quase me formando. — respondeu ela, orgulhosa.
— Que bom, fico feliz. E sua mãe, como tá?
— Tá bem… mas sente sua falta.
Arlindo suspirou fundo, desviando os olhos para o movimento da feira.
— É… mas ela precisa cuidar da sua nona. Você sabe como foi difícil pra ela quando o nono partiu. Ela não estava presente, e isso pesa até hoje.
— Eu sei, pai. — respondeu Yasmin, com um toque de melancolia.
Então Arlindo se abaixou um pouco e olhou para o garoto mais novo com um sorriso travesso:
— E aí, soldado… pronto para sua missão?
Emiliano bateu continência com a mão suja de salgadinho.
— Senhor, sim senhor! Com frituras e tudo mais, estou preparado! — disse, empolgado.
O garoto adorava aquela atmosfera da pastelaria, onde tudo parecia mais simples, mais vivo. Ele via no pai uma mistura de cozinheiro, herói e general. Ali, a vida ganhava sabor e cheiro de massa fritando.
Robson observava tudo de longe, com o pastel quase esquecido na mão. Aquele momento de ternura familiar o pegou desprevenido. Sentiu uma pontinha de saudade de algo que talvez nunca teve por completo.
E então, naquele sábado comum, enquanto o óleo esquentava e a rua começava a encher, a vida mostrava que até os dias mais simples podem guardar cenas inesquecíveis.