Capítulo 10 — O homem de coração puro
Enquanto a massa dourava no óleo e o cheiro de pastel recém-saído fritava junto com o sol de sábado, Robson se aproximou, ainda mastigando o último pedaço do lanche. Passou a mão nos cabelos e ajeitou a camiseta amarrotada, tentando parecer mais apresentável.
— Oi… eu sou Robson. Acabei de me mudar pro bairro, haha — disse ele, estendendo a mão com um sorriso simpático.
Yasmin o encarou de cima a baixo com um olhar frio, quase automático, como quem mede intenções antes de medir simpatia. Seus olhos, claros e sérios, demoraram um segundo a mais na mão estendida. Ela hesitou.
Arlindo limpou a garganta suavemente.
— Aham.
Yasmin revirou os olhos, num gesto quase imperceptível, e apertou a mão de Robson relutantemente, como se fosse mais um protocolo que precisava cumprir.
— Yasmin. — disse, seca. — Prazer.
Logo depois, ela se virou e entrou com Emiliano, que já corria pro balcão pedindo um “pastel do guerreiro” — a versão especial que Arlindo fazia só pra ele, com mais queijo e um traço de pimenta.
Robson se virou pro velho pasteleiro, ainda com a mão meio estendida.
— Você não me contou que tinha filhos…
Arlindo deu uma risada baixa, sentando-se no banquinho perto do fogão.
— Ué… você também nunca perguntou, haha.
Robson riu junto, coçando a nuca, meio sem jeito.
— Ela parece... difícil.
— Yasmin? — Arlindo suspirou, olhando para a filha pela janela da pastelaria. Ela arrumava o cabelo e ajudava o irmão a lavar as mãos. — Ela é. Sempre foi.*
Arlindo tirou um cigarro do bolso e olhou o maço como quem encara uma lembrança. Não acendeu. Apenas girou o filtro nos dedos, pensativo.
— Ela puxou a mãe… firme, determinada, racional. Quando tinha 8 anos, já organizava os livros por autor e data de publicação. Aos 15, brigou comigo por ter deixado o Emiliano comer besteira antes do jantar. Aos 18, saiu de casa pra estudar, e eu quase não a vi desde então. Só vem de vez em quando, quando dá. Sabe como é…
Robson assentiu em silêncio.
— Ela acha que eu nunca fui suficiente pra mãe dela. Que eu deveria ter feito mais, sido mais. E talvez esteja certa. Mas eu dei o que pude: um teto, comida e amor. Mesmo que nem sempre do jeito certo.
Ele parou por um segundo, o olhar perdido em algum ponto no tempo.
— Já o Emiliano é diferente. É mais coração, mais leveza. É o que me lembra todos os dias que nem tudo precisa ser tão duro. Quando ele chega aqui, o lugar brilha. Ele gosta do cheiro da massa, do barulho da frigideira, dos clientes barulhentos… Parece que nasceu pra isso.
Robson olhou pela porta. O menino estava no caixa agora, brincando de ser o dono da pastelaria com um sorriso no rosto.
— E a mãe deles? — perguntou.
— Tá em São Paulo agora. Cuidando da mãe dela. Quando o pai dela faleceu, ela ficou mal. Se sentiu culpada por não estar presente. Foi como se ela tivesse decidido pagar uma dívida invisível, sabe? A gente se separou depois disso. Não brigamos. Só… nos afastamos. Como quem desliga um rádio que ainda tá funcionando.
O silêncio se assentou entre os dois por um instante.
Arlindo respirou fundo, voltou o olhar pro balcão e falou mais baixo:
— No fim, o que me sobra são esses dias aqui. A fritura, o café, as histórias trocadas com estranhos que viram amigos. E, de vez em quando, visitas que lembram que eu não tô tão sozinho assim.
Robson, tocado pela sinceridade, ficou em silêncio por alguns segundos.
— Você é um cara bom, Arlindo. Mesmo que sua filha ainda esteja tentando entender isso.
Arlindo deu de ombros, com um sorriso cansado, mas sincero.
— Eu não quero ser lembrado como o melhor pai. Só quero que eles saibam que eu estive aqui. Que fiz o que pude. E que nunca deixei de amar.
Do outro lado da pastelaria, Yasmin observava os dois conversando. Não ouvia as palavras, mas via os gestos, as pausas, a expressão no rosto do pai. Algo no peito dela se mexeu, sutil como uma brisa.
E o sol da manhã subia devagar, dourando a calçada da pastelaria como se pintasse uma nova chance, uma nova manhã para todos ali.
O sol já passava das oito quando a pastelaria de Arlindo pegava fogo — não literalmente, mas de movimento. Clientes se aglomeravam no balcão, pedidos ecoavam aos gritos, e o cheiro de queijo derretido se misturava com o da massa dourando no óleo quente.
E lá estava ele. Arlindo. O maestro da fritura. O general da barraca. O pai de todo mundo.
— Robson, meu filho, você tá cortando tomate como se fosse cirurgia, rapaz! Mete a faca com coragem! — dizia, rindo alto, enquanto ajudava o ex-concorrente a montar um lanche improvisado pros clientes dele que agora vinham buscar pedidos ali mesmo, na pastelaria.
Robson riu junto, vermelho. Nunca tinha cortado legumes com tanta pressão.
Arlindo não só ensinava, mas tratava Robson como se fosse da família. Colocava a mão em seu ombro, explicava tudo com paciência e, a cada meia hora, oferecia:
— Quer um café, filho? Esse aqui tem mais açúcar que juízo, mas ajuda no dia de feira.
Robson aceitava, cada vez mais à vontade.
Do outro lado, Emiliano corria de um lado pro outro, animado com a missão de anotar pedidos. Arlindo, toda vez que cruzava com ele, dizia:
— Soldado, firme no campo de batalha! Quer mais munição de ketchup?
— Sim, senhor! — respondia o menino, com a energia que só um coração puro tem.
E então, sempre depois, Arlindo parava e passava a mão carinhosamente na cabeça do filho, bagunçando o cabelo com um carinho que valia mais que palavras.
— Meu pequeno herói… você ainda vai ser dono dessa pastelaria, sabia? Mas tem que ser com coração, sempre com coração.
E o menino sorria, com os olhos brilhando, como se aquelas palavras fossem um juramento de guerra e amor ao mesmo tempo.
Yasmin, por sua vez, observava tudo de longe. Sentada em uma das mesas, anotava algo em seu caderno de anotações, fingindo que não estava olhando. Mas ela via tudo. Os gestos do pai. O sorriso bobo de Robson quando Arlindo o elogiava. O jeito como Emiliano o adorava. E ouvia... ouvia cada vez que ele a chamava: