O senhor dos pastéis

Domingo de Sol e Ressaca

Capítulo 12 — Domingo de Sol e Ressaca

O sol já entrava pelas frestas da persiana como um dedo fofoqueiro cutucando os olhos de Arlindo. Ele abriu um olho só, encarando o teto como quem pondera a existência… ou tenta lembrar quantas doses tomou na noite anterior.

— Hmm... quatro pra começar… três no meio… e depois… o Nicolas quis brindar à saúde do Pelé por algum motivo… — murmurou ele, coçando a barriga.

Sentou-se devagar na beirada da cama, soltando um gemido de velho cansado. Não era dor. Era memória corporal do brasileiro adulto que sabe que a pinga sempre cobra a conta no domingo.

Foi até a cozinha arrastando os chinelos. Pegou o copo americano trincado — o da sorte, o que só usava pra ocasiões específicas como curas espirituais e manhãs de ressaca —, despejou água gelada, espremendo um limão com a mão mesmo, e misturou com duas colheres de mel. Engoliu de uma vez.

— Pronto, Jesus. Tô novo.

Depois, abriu o armário onde ficava seu “kit sobrevivência”: Engov, dipirona, bicarbonato e um terço pendurado num prego.

— Fé e farmácia, o segredo da vida longa — disse pra si mesmo, engolindo os comprimidos como quem toma vitamina.

Do lado de fora, o dia estava radiante. A rua parecia mais lenta, mais suave. A vizinhança falava baixo, os passarinhos cantavam alto, e os gritos de crianças jogando bola já ecoavam da esquina.

Arlindo vestiu a bermuda de elástico folgado, a camisa de time surrada, e calçou a velha havaiana torta. Abriu a porta da pastelaria e puxou uma cadeira pro passeio, ainda com os olhos semi-cerrados.

— Acordou, filósofo? — perguntou Zoraide do outro lado da rua, varrendo a calçada. — Ou veio tentar ressuscitar?

— Ressaca é só uma lembrança da noite boa, Zoraide. — respondeu ele, com um sorriso torto. — Ruim é acordar sem história pra contar.

Ela riu e seguiu varrendo.

Logo chegaram Nicolas e Ermes, os dois de óculos escuros e com garrafinhas de água na mão, como se tivessem voltado da guerra.

— Se ontem foi a batalha, hoje é o pós-guerra — disse Nicolas, afundando na cadeira do lado.

— E eu que sonhei que a Yasmin me deu uma intimação pra sair da mesa? — completou Ermes. — A menina me bota medo até no sonho.

Arlindo soltou uma risada e ficou em silêncio por uns segundos, olhando o céu.

— Sabem… ontem à noite me dei conta de uma coisa. A vida é igual pastel. Pode ter recheio bom, pode ter só vento… mas o importante é que a gente faz na hora, do jeito que dá.

Ermes sorriu e respondeu:

— E frita em óleo quente, né? Senão não tem graça.

Os três caíram na gargalhada.

Lá dentro, Yasmin descia as escadas já arrumada, com um livro debaixo do braço. Quando passou pela porta e viu os três homens sentados, derrotados, tomou um gole do próprio café e disse:

— Uma pergunta… valeu a pena?

Arlindo levantou o copo de água com limão como se fosse taça de champanhe:

— Cada segundo, principessa. Cada segundo.

Ela rolou os olhos, mas não segurou o sorriso.

Naquele domingo, não tinha fila na pastelaria, nem correria, nem gritaria de fritadeira. Tinha apenas um homem experiente, rodeado de amigos, de sol, e de um certo orgulho silencioso por conseguir, mesmo com pouco, manter a alma cheia.

Porque para Arlindo, viver era isso: cuidar de todos, rir até doer a barriga, e saber que até uma ressaca tem seu lugar num coração que sempre teve espaço demais.

Yasmin chegou na pastelaria como quem vai invadir uma embaixada. Sapato alinhado, blusa passada, cabelo preso e a cara fechada que só gente decidida tem. Tinha um plano. Um objetivo. Uma missão de filha preocupada:

Tirar Arlindo da pastelaria e levá-lo de volta pra São Paulo.

Primeiro passo: investigar. E nada melhor que os funcionários.

— Oi, Zoraide, bom dia — disse Yasmin, forçando um sorriso. — Me diz uma coisa… o papai tem reclamado de alguma coisa por aqui?

Zoraide, que cortava repolho com a destreza de uma ninja cansada, parou e olhou pra ela com uma sobrancelha arqueada.

— Reclamar? Só se for que o óleo tá demorando pra esquentar ou que o Dudu ainda não aprendeu a rodar o joystick com o dedão. Por quê?

— Ah, nada não… só queria saber se ele anda insatisfeito, cansado… sei lá, se já falou em… se aposentar, talvez?

— Aposentar? O Arlindo? Menina, ele tirou o dente do siso fritando pastel! — disse Zoraide, rindo. — Esse homem só para quando a fritadeira parar de funcionar. E mesmo assim ele tenta dar um jeito com fita isolante.

Yasmin engoliu seco. Segunda tentativa: Ermes.

— E aí, Ermes… o pai não anda reclamando muito não, né? Tipo… da rotina, da cidade, do bairro, da vida em geral?

— Ontem ele disse que vai morrer e pedir pra enterrar ele dentro da pastelaria. Pediu até pra colocarem a chapa como lápide. — respondeu o garoto, enquanto cortava limão. — Reclamando? Só se for porque alguém encostou a vassoura em pé.

Desesperada, Yasmin tentou Nicolas.

— Nicolas, por favor, me ajuda. Ele já comentou alguma coisa, qualquer coisa, tipo… uma insatisfação oculta? Uma vontade de mudança?

— Ele fez um discurso de 40 minutos sobre o cheiro da cebola refogada na manteiga. Chorou no meio. — disse Nicolas, como quem descreve um culto.

Yasmin já estava bufando.

— NÃO É POSSÍVEL! Esse homem não tem um defeito, um tédio, uma hernia? Alguma coisa que indique que ele é um ser humano cansado, que precisa mudar de ares?

— Ele só reclama do preço da mortadela — disse Zoraide, voltando com o repolho. — E mesmo assim, continua comprando como se tivesse no século passado.

No canto da pastelaria, Arlindo ria sozinho vendo um vídeo no celular de um gato escorregando numa pia.

— Isso aqui, ó… isso aqui é a cura de tudo — dizia ele, enquanto mostrava o vídeo pro freguês do lado.

Yasmin sentou na cadeira com um suspiro digno de novela mexicana. Cruzou os braços e ficou ali, observando. A pastelaria pulsava, viva. Era como se respirasse junto com ele. A placa da parede dizia “Pastel e Glória – Desde 1919”. Era mais que um comércio. Era a alma do homem.



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En el texto hay: comedi

Editado: 12.05.2025

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