Capítulo 13 — Due Cuori e Una Padella
(Dois Corações e Uma Frigideira)
O sol da tarde se infiltrava pelas frestas da cozinha da pastelaria, esquentando o ambiente com um brilho dourado e lento, como se até ele quisesse sentar e ouvir a conversa de dois Pasteline.
Guilherme estava sentado à mesa, com uma faca cega tentando descascar uma laranja. Ao seu lado, com os cotovelos apoiados e o queixo na mão, Emiliano observava com admiração pura.
— “Nonno, você sempre corta desse jeito?” — perguntou em italiano, os olhos atentos à lâmina que girava desajeitada.
— “Sempre, piccolo. É assim que se tira a casca sem tirar a alma da fruta.”
Guilherme falava como quem contava histórias até quando só preparava um lanche. Emiliano ria. Ele entendia cada palavra do avô, como se o italiano fosse sua língua do coração. E era. Tinha aprendido com ele desde pequeno, em cada visita, em cada história contada entre frituras e rádios antigos.
— “Você sabe, tu me lembra tanto o tuo papà.”
— “Todo mundo fala isso.”
— “Ma tu é mais atento. Observa tudo. Seu pai era assim também. Só que mais desastrado. Já quebrou uma pilha de prato que dava pra abrir outra pastelaria.”
Os dois riram. Guilherme entregou a laranja ao neto como quem oferece um presente raro. Emiliano mordeu com gosto.
— “A nonna Sofia mandou beijo. Ela ficou em casa com aquela trupe de italianada gritando na sala. Parecia festa de São Gennaro.”
— “Quando ela vem?”
— “Quando der saudade demais. E olha que ela é campeã nisso.”
Emiliano olhou pro avô com um brilho nos olhos, uma pergunta crescendo devagar.
— “Nonno… você e a nonna… vocês brigam?”
Guilherme se ajeitou na cadeira, coçou o queixo com a faca virada pro lado cego e respondeu com um sorriso:
— “Sempre. Ela diz que eu ronco. Eu digo que ela sonha alto demais. Mas no fundo… cada briga é só pra garantir que o outro ainda tá lá. Amor não é silêncio eterno. É barulho de panela batendo e beijo depois do café.”
O garoto sorriu, como se guardasse aquela frase num cofre invisível.
— “Eu queria que papai e mamãe fossem assim. Eles se amavam tanto antes…”
Guilherme esticou o braço e puxou Emiliano pro seu colo, como fazia quando ele era pequeno. O garoto, mesmo com 12 anos, não resistiu ao carinho.
— “As pessoas amam diferente quando o tempo passa. Às vezes o amor tá escondido atrás da saudade. Mas tá lá.”
— “Será que um dia volta?”
— “Se tiver amor de verdade, ele sempre encontra o caminho. Igual massa de pastel: você pode amassar, dobrar, jogar no óleo… mas se for boa, ela incha de novo. Volta a crescer.”
Silêncio. Apenas o rádio tocando um bolero antigo, meio chiado.
Guilherme então apontou para o fogão.
— “Che diciamo de cozinhar só nós dois hoje?”
— “Sério? Papai deixa?”
— “Figurati! Ele vai adorar comer algo que você fez. Mesmo que fique uma porcaria, ele vai fingir que tá bom. Igual eu faço com a sopa da sua nonna.”
Emiliano riu alto.
— “Bene! Vamos fazer gnocchi!”
— “Gnocchi numa pastelaria? Vai dar briga!”
— “Então a gente faz escondido!”
E foi assim que os dois passaram a tarde: entre farinha, bagunça, histórias e gargalhadas. Guilherme ensinando que o ponto certo da massa era quando ela “parecia bochecha de bebê” e Emiliano respondendo que a dele parecia a do tio Tonho, que tinha barba grossa e rosnava.
No fim, serviram o gnocchi num prato fundo, coberto de molho vermelho e queijo ralado. Arlindo comeu com lágrimas nos olhos.
— “Papai, isso tá igualzinho ao da mamma…”
Guilherme não respondeu. Apenas deu um tapinha no ombro do filho e olhou pro neto com orgulho.
Naquele momento, passado, presente e futuro cabiam numa colherada de massa macia.
E Emiliano sorriu. Porque sabia, no fundo do peito, que ele era parte viva de tudo aquilo.
Era uma tarde típica de domingo na pastelaria: cheia de vozes, cheiro de óleo quente e confusão organizada. Mas para Ermes e Nicolas, dois jovens universitários recém-contratados, nada ali era exatamente... típico.
Eles estavam escorados no balcão, tentando parecer úteis, mas disfarçando o fato de que passavam mais tempo observando do que realmente trabalhando.
No centro da cozinha, Guilherme e Emiliano conversavam animadamente em italiano, com gestos exagerados, como se encenassem uma ópera de massas e segredos milenares.
— “Ma nooo, piccolo! Tu gira così!”
— “Nonno! Guarda! Sto facendo bene!”
Nicolas, com uma espátula na mão e expressão de quem tentava decifrar o Código Da Vinci, cochichou:
— “Ermes... cê entendeu alguma coisa?”
Ermes balançou a cabeça lentamente, com a testa franzida:
— “Nem uma vírgula, mano. Só sei que parece importante.”
Ambos viraram para Zoraide, que estava de braços cruzados, assistindo à cena com um leve sorriso.
— “Zoraide... você entende o que eles tão falando?”
Ela soltou um suspiro preguiçoso e respondeu:
— “Uma coisa ou outra... é assunto de família, sabe.”
Nicolas arregalou os olhos.
— “Caramba, Zoraide... poliglota! O que mais você sabe? Russo? Latim? Sânscrito antigo?”
Ermes completou:
— “Ela deve ser tipo a agente secreta da pastelaria.”
Zoraide revirou os olhos, mas não segurou o sorriso.
— “Se eu fosse agente secreta, vocês já tinham sido demitidos faz tempo.”
Os três riram alto. Dona Nair, uma senhora cliente antiga, lançou um olhar cortante da mesa do canto.
— “Esses jovens hoje em dia, só riem! Trabalhar que é bom...”
Nicolas fez uma pose robótica e sussurrou:
— “Alerta de idosa crítica. Ativar modo silencioso.”
Ermes fingiu estar limpando uma mesa com tanto foco que parecia polir um espelho.
Logo depois, Arlindo apareceu da cozinha com um sorriso sereno, lambendo os dedos cobertos de molho.
— “Alguém aqui quer provar o gnocchi do meu filho com o meu pai?”