O senhor dos pastéis

Encontros e Despedidas

Capítulo 16 — Encontros e Despedidas

O velho Celta cortava a estrada com mais esforço do que velocidade, mas Arlindo nem ligava. Com o braço apoiado na janela aberta e o vento bagunçando os poucos fios de cabelo que lhe restavam, ele cantava com o rádio:

— “Ei, ei, calhambeque... bibi!”

O velho carro parecia entender a homenagem e tossia ritmado entre subidas e descidas da estrada. O coração de Arlindo acelerava mais que o motor quando viu, ao longe, a grande casa da família. A mesma casa onde viveu tantos natais, aniversários e domingos cheios de comida e histórias.

Antes mesmo de estacionar, ele viu Elena correndo até ele, descalça no gramado, o sorriso mais largo que o céu. Ela o abraçou com força — daquelas que curam —, e ele sentiu as lágrimas dela molharem sua camisa.

Elena, com seus 40 anos, continuava tão linda quanto no primeiro beijo atrás do balcão da pastelaria. Seus cabelos loiros agora vinham com fios prateados de sabedoria, os olhos verdes ainda eram dois faróis e sua pele clara ganhara algumas marcas do tempo — mas, para Arlindo, era como se ela tivesse congelado no tempo.

— É tão bom te ver... quanto tempo vai ficar?

— Duas semanas. — respondeu ele com um sorriso cansado. — E seu pai? Como ele tá?

— Ele tá bem... bem até onde a idade deixa.

Entraram de mãos dadas, como dois jovens namorados que por acaso tinham uma história inteira juntos. A casa cheirava a café passado na hora e bolo recém-assado. Era como se a memória tivesse perfume.

Logo que atravessou a sala, viu Emiliano, seu filho, sentado no sofá com um controle de videogame nas mãos.

— E aí, pequeno? — disse Arlindo, com aquele tom meio piada, meio saudade.

— Oi, pai. — respondeu Emiliano, largando o controle e vindo dar um abraço rápido, do jeito meio desajeitado dos filhos que já estão crescendo, mas ainda guardam amor no peito.

Subiu as escadas devagar, como se o tempo tivesse voltado. Ao abrir a porta do quarto, lá estava seu Gilmar, deitado, rodeado por almofadas, com um cobertor até a cintura e uma expressão de quem não perde a lucidez nem sob anestesia.

— Oi, meu filho...

— Oi, seu Gilmar.

Arlindo sentou-se ao lado da cama. Não havia pressa. Nem grandes discursos. Apenas duas gerações unidas pelo respeito e pelo amor à mesma mulher.

Ficaram ali conversando. Sobre a vida, os netos, política, e até sobre como o pastel de carne de Arlindo tinha melhorado desde a última visita.

Era uma tarde simples, como tantas outras, mas que para Arlindo, parecia eterna. Porque às vezes, a eternidade cabe dentro de um quarto pequeno, num abraço apertado, e num “que bom te ver, meu filho”.

Enquanto a luz do fim de tarde entrava suave pelas frestas da janela, Arlindo e Gilmar conversavam como dois velhos parceiros de trincheira — separados pelo tempo, mas unidos pelo amor à mesma mulher: Elena.

O velho senhor, agora com seus 88 anos, olhava para o teto como se os pensamentos viessem projetados lá em cima.

— Lembra da primeira vez que a gente se viu, Arlindo? — disse Gilmar com a voz arrastada.

Arlindo riu, jogando o corpo pra trás na cadeira.

— Como esquecer? O senhor parecia um general do exército! Terno engomado, braço cruzado, olhar que cortava vidro...

— E você... com aquele bigodinho ridículo, cabelo cheio de gel, e um terno que parecia emprestado do vizinho. — respondeu Gilmar com um meio sorriso.

Arlindo fez cara de ofendido de brincadeira.

— Ei! Era meu! Tá, era do meu tio... mas eu tava tentando impressionar!

Gilmar suspirou.

— Você sabe... eu sempre fui muito protetor com a Elena. Ela era minha menina, minha única filha... Quando ela chegou em casa dizendo que tava namorando um pasteleiro com “espírito de artista”, achei que fosse uma piada.

— E era mesmo! — Arlindo respondeu — Mas a piada virou casamento!

Ambos riram. Uma risada solta, de quem já passou por todas as tempestades e agora aproveita o sol.

Gilmar continuou:

— Mas naquele jantar... você segurou firme. Mesmo com meu interrogatório, não gaguejou, não mentiu. Falou da sua paixão pela cozinha, do sonho de montar uma pastelaria de respeito... e mais ainda: falou da Elena com tanto carinho, que eu tive que aceitar. Não porque era o que eu queria... mas porque era o que ela precisava.

Arlindo engoliu em seco, emocionado.

— E olha, seu Gilmar... o senhor me testou mesmo. Eu saí daquele jantar suando mais que coxinha na fritadeira.

— Coxinha boa tem que suar, Arlindo. — respondeu Gilmar com um sorriso cheio de sabedoria.

Então o silêncio veio, e com ele, novas memórias.

— O casamento foi lindo, né? — disse Arlindo, com os olhos já marejados.

— Foi. A Elena parecia uma rainha... e você, bom, parecia um pasteleiro com terno novo. Mas um bom pasteleiro. — Gilmar brincou.

Ambos riram de novo, como se os anos não tivessem passado.

— E quando a Yasmin nasceu... — disse Arlindo, com a voz embargada — foi como se o mundo tivesse parado só pra mim. Segurar ela nos braços... foi ali que eu entendi o que é amor de verdade. A Elena brilhava, o senhor chorava escondido e a Yasmin... já fazia biquinho de quem ia ser brava.

Gilmar soltou um riso rouco.

— Ela puxou a mãe. Mas o coração... puxou você.

Arlindo estendeu a mão e apertou a do velho sogro com firmeza e respeito.

— Obrigado, seu Gilmar. Por ter me aceitado... e por ter me dado a chance de fazer parte dessa família.

Gilmar olhou pra ele com um brilho suave nos olhos.

— Você nunca foi só um genro, Arlindo. Você é meu filho também.

O sol se despedia do céu, tingindo o quarto de laranja e ouro. E ali, entre memórias e afeto, o tempo parecia ter feito as pazes com a vida.

Os dias em São Paulo passavam num ritmo diferente. Mais lentos, mais doces. Arlindo acordava cedo, como de costume, mas agora sem o barulho das fritadeiras ou o cheiro de óleo no ar. Colocava sua camisa simples, o boné surrado e saía pela calçada rumo à padaria da esquina.



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En el texto hay: comedi

Editado: 26.05.2025

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