Sob o Véu da Noite

Capítulo 3: Fogo e Farsa

Dois dias inteiros de espera, e finalmente o porto abriu suas portas. O cheiro de sal misturava-se ao da fumaça que subia em espirais lentas como um dedo acusador. À frente, seis trirremes jaziam inclinadas na água, cascos rachados expondo vigas retorcidas, quase engolidas pelos incêndios intermitentes que lambiam suas carcaças como animais famintos. O ar cheirava a alcatrão queimado e âmbar, um perfume de derrota. Finalmente desembarcaram, ainda sentindo o chão ranger sob seus pés — não mais das tábuas velhas do navio, mas dos incontáveis estilhaços de madeira carbonizada que cobriam as docas.

Não houve tempo para sentir o alívio de pisar em terra firme: uma guarnição ateniense, liderada por um homem de olhos nublados e passos incertos, como os de quem caminha sobre um terreno traiçoeiro, se aproximou. O oficial ateniense usava uma couraça tão polida que refletia o fogo ao longe, mas seu rosto era sombrio, marcado por cicatrizes que não vinham de batalhas. Ele empunhava um pergaminho, e o selo da cidade pendia de suas mãos como um machado prestes a cair.

— Demóstenes e sua tripulação — anunciou, desenrolando um papiro que estalou como um chicote. — Por ordem da Bulé, sua trirreme está apreendida para fiscalização. Enquanto isso, devem permanecer em confinamento preventivo até que a assembleia decida seu destino. — A decisão pairou no ar como o som de uma lâmina sendo desembainhada.

Demóstenes riu. Um riso seco, sem humor. — É bom te ver, Bias. Vejo que também entrou para o circo.

— Conhece o procedimento.

— Imagino que sim.

Atrás de si, o velho soldado que bradava à luz da fogueira na noite anterior deu um passo à frente na intenção de protestar, mas sua voz encontrou um muro intransponível na guarnição. Lentamente, os soldados cercaram-os, as mãos no punho das espadas. Cadmo mordeu o interior da bochecha até sentir o gosto de sangue, as castanhas no bolso esquecidas por um instante.

— É o suficiente. Homens, abaixem as armas. Não buscamos confusão aqui. Isso também serve para vocês — e com um gesto de cabeça fez com que as tropas de Bias se dispersassem — Mostre o caminho.

Resignado, o oficial ateniense apenas acenou, os ombros pesando sob o olhar de seus homens. Seguiram sob o sol implacável, conduzidos como gado por ruas fervilhantes. A cidade era um turbilhão de caos. Tropa após tropa marchava pelas vias estreitas, espadas reluzindo e olhos afiados. De um lado, um homem gritava em cima de um carroça virada, gesticulando como um louco enquanto a multidão se acumulava; do outro mulheres arrastavam baús pelas ruas, crianças choravam agarradas a bonecos de trapo sem olhos. Um soldado passou correndo, carregando um saco de grãos vazando farinha — ou talvez cinzas.

Foram levados a um edifício de pedra, um lugar frio e escuro, onde o cheiro de mofo misturava-se ao suor azedo de corpos exaustos. Os homens foram empurrados para celas coletivas, seis ao todo, tão apertadas que o calor de outro homem se tornava uma segunda pele. As paredes de pedra estavam úmidas e cobertas de musgo e as grades enferrujadas rangiam a cada movimento. Do teto, pingava um líquido espesso e mal cheiroso. Cadmo encostou-se na parede, observando uma aranha tecer sua teia entre as barras.

O tempo passou como um animal ferido, lento e doloroso, até que o polemarco chegou. Seus passos ecoaram antes de sua presença, e quando apareceu, sua figura lembrava o aço: frio, direto e perigoso. Seu manto púrpura estava desbotado, e os anéis nas mãos tinham pedras faltando. Ele e Demóstenes se encararam sob olhares tensos, como velhos conhecidos que não esperavam se encontrar diante de tal situação. O silêncio pesou até que um dos dois ousasse abrir a boca.

— O que houve? — perguntou Demóstenes.

— O que não houve, seria uma pergunta mais adequada. Está atrasado.

— Tempestade.

O polemarco soltou um ruído rouco — É claro que sim. Espero que tenha boas notícias sobre…

— Qual o significado disso? — interrompeu Demóstenes — Eu e minha tripulação. Arrastados como porcos para o curral? Depois de tudo…

— Calma lá. Foi necessário.

— Necessário? — Soltou uma risada de indignação — Me parece que existem urgências maiores do que essa…essa…

— Siracusa foi um desastre — disse, sem preâmbulos, os olhos fixos em Demóstenes.

— Siracusa? Como…?

— Discutimos isso em outro momento — disse o polemarco enquanto sondava as celas ao redor. Seus olhos se demoraram sobre a figura de Cadmo. Podia-se ver uma sombra de curiosidade.

— O que é que tenha a dizer, pode dizer na frente deles. Eles têm o direito de saber o motivo de estarem aqui, encarcerados pelos seus, que não exitaram em defender com unhas e dentes há pouco.

O homem suspirou. Seus olhos cansados agora fitavam o chão, sem forças para discutir — Muito bem. Os espartanos romperam o cerco à cidade. O embate em terra não foi tão desfavorável assim, mas acabamos encurralados na praia entre os espartanos e os sicilianos, que, por sua vez, sob o comando de um tal de Gilippo, encarregaram de afundar a maior parte da nossa frota, como se fossemos bárbaros em balsas. E agora… — A voz quebrou, sentindo o pesar. — Bom, a situação está complicada

Demóstenes cruzou os braços. — Alcibíades é um tolo.

— De fato. Mas, é um tolo popular, sem dúvidas. Isso não foi o suficiente para abalar de forma significativa a sua influência. Seus apoiadores insistem que a campanha teria sido bem sucedida se a oposição tivesse concordado em ceder mais navios para a campanha. Navios estes que estavam com você. Agora, precisam de um bode expiatório. Cabeças para acalmar o povo.



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En el texto hay: mitologia, drama accin, enemiestolovers

Editado: 23.05.2025

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