O edifício era um anel de mármore frio, suas arquibancadas, desgastadas pelo tempo e pelo uso, subiam em fileiras circulares até o teto abobadado como órbitas sem olhos. Na última fileira, uma figura solitária se destacava, com a postura ereta e o olhar fixo em um pergaminho que descansava em suas mãos, a sombra de um pilar escondendo metade de seu rosto. O homem parecia alheio ao eco de seus próprios passos, concentrado em um murmúrio discreto trocado com um guarda de braços marcados por cicatrizes de chicote.
À porta, o polemarco ergueu o braço, barrando a entrada de qualquer um que não fosse Demóstenes. O olhar dos dois atenienses se cruzaram, a tensão crescente pairando no ar.
— Ele o aguarda. Somente você.
— Estou certo de que Péricles deseja saber o motivo dele estar aqui — disse Demóstenes, cruzando os braços e acenando na direção de Cadmo.
— Ele não pode ter acesso ao relatório.
— Não cabe a você decidir
A testa do polemarco se enrijeceu numa reação quase imperceptível, então fitou Cadmo por alguns segundos, até que desviou seu olhar para o pomo da espada, impecavelmente lustrado, em contraste com o resto dos trapos que vestia.
— Muito bem — disse o Polemarco — mas, as armas ficam aqui.
Por um minuto, seu olhar parecia distante dali, observando aquela figura misteriosa, até que Demóstenes completou impaciente. — Cadmo, o gládio…
Cadmo hesitou. O polemarco percebeu. Agora, tinha sua mão pousada no pomo da espada. Observou a presença dos soldados ao redor, homens austeros. “Não estamos mais entre aliados”, lembrou-se. Até que, finalmente, retirou a espada da bainha num movimento lento, e a entregou ao soldado ao seu lado. Tratou de registrar muito bem o seu rosto, no caso da espada não retornar a suas mãos.
Quando Cadmo e Demóstenes se viraram para entrar, o polemarco completou — a adaga também — e ambos congelaram no meio da passada. Os guardas na porta tornaram a fechar o caminho com lanças cruzadas. Demóstenes se virou a tempo de ver Cadmo sacar a lâmina curta, escondida no manto, e entregar nas mãos do oficial ateniense.
Pela primeira vez viu aquele homem esboçar a sombra de um sorriso no momento em que falou — Era um blefe, rapaz. Mas, imaginei que você não decepcionaria minhas expectativas — baixou os olhos para examinar a lâmina — É uma bela peça. Mas, facilmente identificável.
Cadmo permaneceu em silêncio, enquanto o homem testava o fio da lâmina na ponta do dedão ressecado. Até que suas sobrancelhas franziram sob o entendimento da situação — não sabia quem eu era, não é?
— Não. Mas, já sei o suficiente — disse, enquanto entregava a adaga ao mesmo guarda que segurava a espada — Demóstenes, já sabe minha opinião sobre o assunto. Se algo acontecer, vou responsabilizar você.
O destacamento ateniense bateu os pés em continência no momento em que o oficial retornou à dianteira da formação e partiu em passos sincronizados na direção do caminho de onde vieram.
Ambos os observaram partir, até que Demóstenes finalmente interrompeu o silêncio — Qual era a da adaga?
— Não confio neles.
— Te tomaria como um tolo caso confiasse — Demóstenes o puxou para longe dos guardas na porta e sussurrou — Eu preciso saber de tudo, entendeu? Até descobrirmos o que está acontecendo aqui, a única coisa que separa a sua cabeça do machado é a minha palavra.
Cadmo concordou em silêncio. Por cima dos ombros de Demóstenes, os guardas desviaram o seu olhar no último momento, fingindo desinteresse. Então, finalmente adentraram naquele salão. A escassa luz invadia o lugar por finas frestas nas paredes elevadas. O eco de seus passos reverberou no vazio, como se o próprio prédio os estivesse julgando. Quando se aproximaram, um homem de barbas grisalhas ergueu o olhar e deixou o pergaminho de lado, dispensando o guarda com quem conversava.
— Demóstenes — ele cumprimentou, seco, mas com a voz firme de quem já tinha resolvido muitas guerras antes de o dia começar. — E imagino que este seja Cadmo?
— General — retribuiu Demóstenes, enquanto retirava sua clâmide manchada de lama — Sim, este é o homem que mencionei em minhas cartas. É inteligente, capaz e leal. Vai nos ser útil.
Péricles estreitou os olhos e avaliou Cadmo por um momento, como se pudesse ler sua história escrita nos ombros tensos e na postura alerta. Finalmente, assentiu — Veremos. Pelos seus informes, não duvido que ele seja inteligente e capaz, mas lealdade não é algo que avalio sem prudência. Diga-me, Demóstenes, teria ele saído de sua vista em algum momento desde que chegaram?
O ateniense engasgou com uma resposta, no momento que Cadmo o interrompeu. — Sim, general. Eu não era seu prisioneiro.
— Imagino que não — Péricles deixou escapar um pigarro de desaprovação.
— Não sou um conspirador, se é o que pergunta.
— De fato. É um traidor.
— O que disse? — cuspiu Cadmo.
— Era um aliado em Samos, você diz? — perguntou, o dedo indicador apontando para Cadmo como uma adaga. — E por que está aqui? É apenas uma alma solidária ou um lobo em pele de cordeiro?
Cadmo manteve-se imóvel, as mãos fechadas atrás das costas, onde ninguém via os dedos tremendo.