Sob o Véu da Noite

Capítulo 7: Vinhos e Vozes Partidas

A terceira cratera de vinho aguado esvaziava-se lentamente, tingindo as bordas da cerâmica com o vestígio púrpura da bebida. O salão da taverna vibrava com vozes sobrepostas, gargalhadas e o rangido do assoalho sob o peso de soldados embriagados. Stentor, o quartel-mestre de Demóstenes, estava no auge de sua performance, contando, com gestos exagerados, como sereias haviam supostamente invadido seu navio.

— Então, elas vieram do nada. — berrava, os olhos vidrados. — Tinham cabelos de algas e dentes enormes! Não deixaram nada! Roubaram até as botas dos mortos!

Cadmo fitava a fogueira distante, até que uma cotovelada do remador ao lado o despertou e quase derrubou a sua bebida.

— Acreditas nisso, Cadmo? — o homem riu, o hálito carregado de alho.

Cadmo não respondeu.

— Você acha que somos idiotas?, seu velho — Outro marinheiro bradou, de repente, do outro lado da mesa — Se tudo isso tivesse acontecido mesmo, você estaria morto.

— É aí que tá, moleque, eu morri! — Stentor levantou o dedo indicador para silenciar os soldados que protestavam — Morri por um tempo! Meu coração parou e elas pensaram que eu já estava nos salões de Hades. Essas cicatrizes — ele apontou para o lado esquerdo do rosto — minha cara estava destruída. Uma delas tinha até enfiado as garras na minha barriga, até onde o vinho desce. Me caguei e tudo.

Os marinheiros se dividiram entre os que davam risadas e os que o xingavam. O remador ao lado de Cadmo completou — Você ainda não explicou por que elas não terminaram o trabalho.

— Essa é a melhor parte — ele subiu na mesa, entornando um copo de vinho. O líquido púrpura escorreu pela sua barba branca, pingando grosseiramente em seu manto de linho cru.. — Quando acordei, estava deitado num colchão de palha no meio de uma floresta com árvores gigantes — Seus braços se agitavam descontrolados, os olhos arregalados — E tinha um monte de bode andando pra lá e pra cá!

— Bodes? — Os marinheiros silenciaram, curiosos — Você foi parar o que, na Fenícia?

— Que Fenícia, o que — retrucou o que tinha chamado Stentor de velho — Tem bode aqui por tudo. Ele devia estar ali próximo ao vilarejo de Brauron.

— Vocês não me entenderam — Stentor voltou a gritar, agitando os braços — Os bodes estavam andando…de pé!

O silêncio tomou a roda. Os marinheiros se entreolharam. A atenção se voltou para Cadmo, que entendeu o recado. Ele engoliu com dificuldade, então cortou a tensão.

— É isso que dá beber esse xixi aguado — disse Cadmo sob a máscara de um sorriso — A galera arruma até justificativa para se aliviar com bicho no meio da floresta.

A roda explodiu em gargalhadas. Cadmo girou a taça entre os dedos, fingindo desinteresse. Observou a luz bruxuleante das velas se distorcer no vinho semitransparente. Na superfície turva, via o reflexo de Helena, suas mãos enrugadas batendo roupas no rio. Parece que faz uma vida, pensou. Sinto falta de suas histórias. Quando eram apenas histórias…

No canto do salão, um bardo começou a martirizar uma lira, cada nota desafinada como unha arranhando pedra. Nada que se comparasse às palavras que haviam tocado Cadmo horas antes, na Acrópole. A poetisa. Havia algo nela que o inquietava, um magnetismo que, agora, sob a embriaguez morna do vinho, pulsava como uma necessidade quase irracional de voltar e dizer que sua poesia o tocara. Ele esmagou uma castanha no bolso, sentindo as lascas perfurarem a palma.

Uma nova cotovelada arrancou-o do devaneio. Apertou os dedos ao redor da taça e conteve o impulso de socar o remador. Em vez disso, levantou-se, atravessando o salão em direção ao bar, onde o dono e sua filha corriam para manter o fluxo incessante de guisado ralo. Encostou-se na bancada e deixou o olhar vagar pelo ambiente abafado, iluminado apenas pelo tremular das chamas. O ar estava carregado de fumaça e suor, e as conversas subiam desnecessariamente altas. A maior parte dos frequentadores eram soldados, e Cadmo manteve-se em silêncio, atento, pescando informações sobre a guerra que evitavam compartilhar com ele.

O ranger da porta anunciou a chegada de Demóstenes. Sem armadura, mas ainda com a espada na cintura, atravessou o recinto com passos decididos. Jogou-se sobre a bancada, pediu uma caneca de vinho e a entornou sem cerimônia, deixando seu manto salpicado de vermelho escuro, como gotas de sangue fresco.

— Mais um dia tranquilo? — Perguntou Cadmo

— Mais um — Não conseguiu decifrar se Demóstenes lhe respondia ou chamava por outra bebida — Cansei. Retornamos no próximo barco para Jônia? — perguntou com um sorriso torto de ironia. — Desta vez, prometo menos batalhas e mais banhos quentes.

Cadmo riu, virando-se para ele. — É…Não era tão ruim. O que deu?

Demóstenes bufou, passando a mão pelos cabelos escuros. — Burocracia. Política. Gente chata demais — Balançou a cabeça, irritado. — Só se fala na derrota em Siracusa, no estado desastroso da frota… E, ao que parece, não terei nem uma semana de descanso. Em breve, partirão para Mégara. A recompensa por uma campanha bem-sucedida é outra campanha, desta vez na linha de frente.

— Pelo menos manteve sua cabeça. — retrucou Cadmo.

— É. Pelo menos isso. — O tom de sarcasmo não escondia a amargura. Ele girou a caneca entre os dedos, os nós esbranquiçando. Então, olhou para Cadmo com um brilho curioso nos olhos.— Chegou a considerar a oferta de Péricles?



#1326 en Fantasía
#1893 en Otros
#339 en Novela histórica

En el texto hay: mitologia, drama accin, enemiestolovers

Editado: 23.05.2025

Añadir a la biblioteca


Reportar




Uso de Cookies
Con el fin de proporcionar una mejor experiencia de usuario, recopilamos y utilizamos cookies. Si continúa navegando por nuestro sitio web, acepta la recopilación y el uso de cookies.