A viagem foi longa e silenciosa, interrompida apenas pelo ranger das rodas no caminho de terra batida. O céu já estava tingido de tons escuros quando a carruagem parou, finalmente. Gabriel olhou pela janela, divisando as sombras de um porto pequeno e isolado. Um barco aguardava, os mastros altos balançando contra o céu.
A porta da carruagem escancarou-se com um estalido brusco, e Gabriel percebeu que devia sair. Desceu os degraus, e os pés tocaram o chão frio, enquanto uma sensação de desconforto se espalhava pelo seu corpo. O cheiro a sal e algas pairava no ar, e o som das ondas a rebentarem contra o cais era um aviso sombrio de que não havia volta a dar.
Uma voz grave e autoritária ecoou na noite.
"Este é o rapaz?"
Gabriel virou-se e viu um homem alto, de cabelos escuros e uma cicatriz que lhe cortava o rosto do lado direito, desde a sobrancelha até ao queixo. A sua presença era imponente, quase predatória, e o sorriso frio que exibia não oferecia qualquer conforto.
"Sou o Capitão Redford," disse o homem, passando os dedos pela cicatriz como se fosse um hábito inconsciente. A sua voz era áspera, marcada por anos de comando. "Aqui, perguntas não salvam ninguém. Vais obedecer... ou vais rezar para que o mar te leve primeiro."
Gabriel sentiu os músculos contraírem-se, a respiração a prender-se por um instante. Ele sabia, sem que ninguém precisasse de lhe dizer, que a sua vida acabara de mudar de forma irreversível.
Foi arrastado em direção à prancha de embarque, os pés a tropeçarem na madeira molhada do cais. O cheiro a maresia misturava-se com o odor azedo de peixe e suor, tornando o ambiente ainda mais sufocante. Cada passo era acompanhado pelo olhar vigilante de Redford, cujo silêncio era tão ameaçador quanto as suas palavras.
Subiu a prancha estreita até ao convés, o vento gelado a cortar-lhe o rosto. O estalido das velas içadas cortava o silêncio, entrelaçado com as ordens bruscas do Capitão. O convés era um emaranhado de sombras e movimentos rápidos — homens ocupados com as suas tarefas, outros a observar o novo recruta com olhares avaliadores, alguns cheios de desdém, outros apenas indiferentes.
Gabriel esforçou-se para não parecer intimidado. Um balde de água salgada foi derramado no convés, espirrando-lhe nas botas. Murmurou para si próprio. "Pelo menos agora as minhas botas cheiram a mar."
A observação, dita sem intenção de ser ouvida, arrancou uma gargalhada curta de um dos marinheiros. Gabriel virou a cabeça para tentar ver quem se rira, mas antes que pudesse descobrir, a voz cortante de Redford fez-se ouvir. "Rapaz, se falares menos e trabalhares mais, talvez venhas a ser útil para alguma coisa."
Gabriel endireitou-se. "Bem, pelo menos ainda não me atiraram borda fora… isso já é um bom começo, não?"
O Capitão semicerrou os olhos e aproximou-se lentamente. O silêncio à volta tornou-se mais denso. "Borda fora?" Repetiu, a voz carregada de ironia. “Rapaz, só atiramos borda fora quem vale menos do que a água que bebemos. Trabalha para provar que não és um desperdício, e talvez sobrevivas até ao jantar."
Os marinheiros riram-se baixinho, afastando-se. Gabriel engoliu em seco, mas não desviou o olhar. Redford manteve-se a observá-lo por um momento, os lábios a curvarem-se num sorriso que não chegou aos olhos.
"Tens coragem, pelo menos," murmurou. "Vamos ver quanto tempo dura."
Enquanto o barco se afastava do porto, Gabriel olhou uma última vez para a costa que desaparecia na escuridão. O medo e o sentimento de abandono apertavam-lhe o coração. O lar que conhecera, os amigos que deixara para trás... tudo parecia agora um sonho perdido na espuma do mar.
"Mexe-te, rapaz!" Gritou um dos marinheiros, empurrando-o para longe do parapeito. Gabriel tropeçou, mas endireitou-se rapidamente, cerrando os punhos. Não mostraria medo. Não daria aquele prazer a ninguém. As palavras que murmurara a Lilian antes de partir soaram-lhe de novo na mente. Eu vou voltar.
Ao longe, as colinas que um dia testemunharam as brincadeiras de Gabriel, Lilian e Clara pareciam adormecidas, envoltas no véu do nevoeiro noturno. Seriam sempre as mesmas, mas ele... ele já não era.