O amanhecer desvendava as formações rochosas que protegiam o pequeno porto, silhuetas cinzentas emergindo das sombras da noite. O navio de Gabriel deslizava pelas águas como um espectro, silencioso e indesejado.
Aquele lugar nunca fora o seu lar. Mas a costa ainda guardava os rostos que ele tentava esquecer. Laços que já deviam estar mortos. Mas as pedras lembravam-se. E ele sabia que, no fundo, nunca fora realmente embora.
O vento salgado arrepiava-lhe a pele, mas não era o frio que o incomodava. Era o pressentimento de que, ao pisar terra firme, algo dentro dele ruiria. Voltava a um cenário onde fora espectro — uma sombra entre sombras, um fantasma sem rosto.
Nunca se atrevera a aproximar-se da sua família ou de Lilian. Havia coisas que preferia deixar enterradas. Lilian. O nome dela pairava na sua mente como uma cicatriz mal curada. Que direito tinha ele de pensar nela, agora? Ela pertencia a outro mundo. Um mundo limpo, onde um homem como ele não deveria ousar entrar. Mas agora… agora já não era uma sombra. Desta vez, não viera para desaparecer na noite. Viera para ficar.
Sentiu passos atrás de si. Um dos seus homens aproximou-se, ajustando o chapéu antes de comentar, num tom despreocupado:
— Nunca pensei que voltasse a estas águas, Capitão. — O marinheiro coçou a barba, lançando um olhar ao porto. — Depois das Caraíbas, achava que nunca mais íamos pisar terras inglesas.
Gabriel permaneceu em silêncio, os olhos fixos no horizonte.
— Nem sempre escolhemos para onde o vento nos leva.
O homem soltou uma gargalhada áspera.
— Pois. Mas este vento já o levou bem longe. De contrabandista a corsário do rei… Nem todos sobem assim tão depressa.
Gabriel apenas sorriu de esguelha, sem confirmar nem negar. O sucesso tinha um preço. O dele fora pago em sangue e silêncio. Os dedos deslizaram discretamente pelo interior do casaco até ao pequeno anel de sinete, sentindo o relevo do brasão. Um conde. Um homem com terras e títulos... mas sem um verdadeiro lar.
A confiança do rei trouxera-lhe muitas coisas. Missões secretas, influência na corte, uma fortuna que a maioria dos homens nunca sonharia possuir. Mas também o deixara preso a um jogo onde os rostos eram máscaras e ninguém era quem aparentava ser.
O futuro da coroa pode depender disto, Sinclair. — A voz do rei ecoou-lhe na mente, tão clara como da última vez que a ouvira. — Há um traidor entre nós, alguém com acesso a segredos de Estado e envolvido em negócios obscuros que estão a depauperar o tesouro real. Precisamos de provas. De alguém que os possa desmascarar. E ninguém sabe quem tu és, o que te torna a escolha perfeita.
Gabriel inspirou fundo, afastando o pensamento. Não olhes para trás. Não penses. Não sintas. Era essa a regra. Mas ali, com o cheiro da costa e a sombra das falésias ao longe, tudo o que ele fora ameaçava emergir. E ele não sabia se conseguiria afundá-lo de novo.
Lucien D’Anjou era o nome que o mundo conhecia. O outro — Gabriel — pertencia a um tempo que já não existia. Durante anos, fora assim que se apresentara. Um homem sem passado. Sem laços. Sem raízes. Apenas propósito.
Mas, enquanto observava a linha da costa, tomava consciência de uma verdade perigosa. Hoje, não era Lucien quem regressava a Inglaterra. Era Gabriel. E isso… isso era um risco que não podia ignorar.
— Capitão, estamos a preparar-nos para ancorar — anunciou o imediato.
Gabriel virou-se, a fisionomia inexpressiva.
— Prepara a tripulação e verifica a profundidade. Quero tudo pronto para ancorarmos assim que nos aproximarmos.
O homem acenou com a cabeça, retirando-se rapidamente, e ele voltou a olhar para o horizonte, respirando fundo. Amanhã, estaria de novo em terra firme. Mas este regresso não era um acaso. O nome Cavendish surgira nos rumores que ouvira, acompanhado de insinuações sombrias. Segredos mal enterrados, conspirações sussurradas em tabernas escuras.
Fechou os olhos. O passado nunca se fora embora. Apenas esperara pelo momento certo para o arrastar de volta.